Este texto foi originalmente publicado no portal Hora Campinas em 02/09/2024.
– Por Carmino de Souza
Nos últimos quatro anos, cientistas têm tido um laboratório gigante, quer percebam ou não. A pandemia colocou a pesquisa em evidência como nunca antes. Vimos colaboração científica global em uma escala sem precedentes.
Em todos os países e disciplinas, milhares de especialistas se concentraram urgentemente em um único problema, o da Covid-19. Isso forçou alguns avanços importantes para a Ciência Aberta, pois todos aceitaram o desafio:
• Informações antes bloqueadas por paywalls, embora muitas delas fossem financiadas publicamente, foram abertas a cientistas do mundo todo.
• Muitos dos imperativos usuais do disfuncional sistema de crédito acadêmico foram deixados de lado, pois os resultados e dados foram compartilhados imediatamente.
• Pré-impressões e outros compartilhamentos online se tornam a norma quando o atraso de até mesmo algumas semanas para a publicação poderia significar vidas perdidas.
• Centenas de ensaios clínicos foram lançados, reunindo laboratórios e hospitais ao redor do mundo.
• O sigilo e a acumulação habituais de dados que poderiam levar a bolsas e promoções foram corroídos pela urgência do momento.
Tudo isso aconteceu porque era uma questão de sobrevivência vivenciada urgente e simultaneamente por sociedades ao redor do mundo. Mas as falhas fundamentais das práticas tradicionais de pesquisa e compartilhamento também foram expostas pela pandemia. E elas ilustram perfeitamente os imperativos da Ciência Aberta em escala global.
As lições aprendidas por todos nós devem indicar um caminho melhor para o futuro. O que se tornou possível durante a pandemia deve se tornar a norma, não a exceção. Os editores concordaram que o acesso à pesquisa relacionada à COVID era essencial para acelerar nossa resposta à pandemia.
O que levanta uma questão prática e moral sobre por que a mesma abordagem não é necessária para resolver problemas como a crise climática ou encontrar uma cura para várias doenças, degenerativas ou infecciosas. Na última década, fizemos um progresso tremendo com o Open Access (acesso aberto) ao conhecimento acadêmico. Mas a ciência aberta é mais do que ser capaz de ler um artigo. É sobre fornecer o contexto certo para entendê-lo, os recursos para replicá-lo, as ferramentas para colaborar e tornar a ciência melhor. E também é sobre participação equitativa na criação e no compartilhamento de conhecimento.
Considere um problema como a busca por uma vacina universal contra o coronavírus. Imagine se todos tivéssemos acesso a todos os elementos de pesquisas passadas e atuais. Imagine se tivéssemos detalhes suficientes sobre experimentos para replicá-los. Imagine se tivéssemos acesso a todos os dados subjacentes para poder reutilizá-los. E imagine se soubéssemos tanto sobre os experimentos que falharam quanto sobre os que funcionaram.
Alguém realmente acha que não teríamos encontrado uma vacina de forma mais rápida e eficiente? Para que a publicação acadêmica chegue a esse estado futuro, é preciso uma mudança radical. Sem mudança, corremos o risco de uma série de desafios, incluindo um que todos nós estamos vivenciando hoje – a possível erosão da confiança na ciência e no conhecimento.
No nível social, a confiança e a fé na ciência são cruciais se quisermos enfrentar coletivamente nossos desafios globais. Como, por exemplo, podemos esperar que as pessoas “tomem a vacina” se não confiam na ciência ou nos cientistas que a desenvolveram? Nos EUA, a confiança na ciência sofreu um golpe real durante a pandemia. Mas o que é realmente impressionante é como essa tendência tem sido perigosamente alimentada globalmente pelo aumento de movimentos populistas.
Uma mudança que está tornando ainda mais difícil encontrar um acordo sobre causas e soluções para ameaças importantes, como a crise climática. A falta de entendimento público – particularmente entre aqueles com menos conhecimento sobre ciência – foi uma causa subjacente significativa. Mas a solução não é colocar a ciência de volta em sua “caixa preta”. As maneiras como compartilhamos e comunicamos os resultados da pesquisa podem causar impacto.
A publicação acessível dos resultados, dados e ideias decorrentes da pesquisa é uma parte fundamental de como a ciência funciona e avança. Incentivar essa transparência pode ajudar a construir confiança entre as partes interessadas e permitir uma avaliação mais robusta.
No entanto, um mundo em que cada estágio do processo de pesquisa é compartilhado por padrão é muito diferente da maneira como o sistema funciona hoje. Muitas pessoas – principalmente aquelas que se beneficiaram do sistema atual – acham que está tudo bem. E aqueles que querem mudá-lo, como pesquisadores em início de carreira, não têm poder e influência para fazê-lo. Quando se trata de publicação científica, as preocupações sobre as maneiras pelas quais os interesses comerciais estão distorcendo os valores científicos vêm crescendo há décadas. A maioria dos pesquisadores estabelecidos pratica ciência fechada há anos, até mesmo décadas. Mudar esses hábitos requer algum tempo e esforço.
A tecnologia está ajudando a acelerar esse processo de adoção de hábitos abertos, mas a mudança comportamental é sempre mais difícil. Coletivamente, vários problemas levam a uma estagnação arraigada que bloqueia a mudança.
O que estamos falando aqui é de uma transformação da cultura de pesquisa e dos incentivos que impulsionam o comportamento do pesquisador. Uma que requer ação de instituições, financiadores e formuladores de políticas, juntamente com editores.
Nós nos orgulhamos do papel crítico que desempenhamos na eliminação da má qualidade e da fraude na ciência, na curadoria do que é mais relevante e importante para diferentes leitores e usuários. Sem subestimar as profundas questões sistêmicas, há maneiras significativas pelas quais podemos começar a progredir e construir um sistema de publicação que corresponda melhor ao processo de pesquisa.
>>> Carmino Antônio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Diretor Científico da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH). Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan e pesquisador responsável pelo CEPID CancerThera.