Este texto foi originalmente publicado no portal Hora Campinas em 11/12/2023.
– Por Carmino de Souza e Juliana Natívio
A principal estratégia de combate a um inimigo é conhecê-lo da melhor forma possível. Saber o número de seus combatentes, suas posições geográficas, seus principais alvos, suas estratégias de ação. No enfrentamento às doenças, as estratégias não devem ser diferentes; se quisermos sucesso na prevenção e no controle de enfermidades, a informação é nossa principal aliada.
O câncer é um grande desafio para o sistema de saúde brasileiro (mas também em todo o mundo) dada sua complexidade epidemiológica, social e econômica. A luta contra o câncer tem como principais objetivos a prevenção ao surgimento de novos casos, a detecção precoce e os tratamentos assertivos para aumentarem as taxas de cura ou anos de sobrevida com qualidade. E nessa luta, temos maiores possibilidades de sucesso se conhecermos o real número de pessoas acometidas pela doença, bem como suas principais características nas diferentes populações. A epidemiologia do câncer é responsável por quantificar todos os casos e mortes relacionados às neoplasias.
Os Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP) são órgãos criados especificamente para cumprir a missão de promover investigações estatísticas e epidemiológicas do câncer, e são reconhecidos mundialmente como importante ferramenta no controle e no monitoramento das neoplasias.
As principais atividades realizadas pelos registros são a coleta sistematizada de dados de todo caso diagnosticado com neoplasia invasiva de um determinado território, consolidação e “limpeza” do banco de dados, sistematização e divulgação das informações. As principais informações geradas através dos dados de um registro de câncer são: tipos de neoplasias mais incidentes, faixas etárias e sexo mais acometidos por cada tipo de neoplasia, padrões de incidência da doença em diferentes grupos populacionais, diferenças temporais de incidência em uma mesma população, entre outras.
No Brasil, a criação do primeiro registro foi em 1967, no Recife, e, logo em seguida, em São Paulo (1969). Atualmente, existem em torno de 30 registros ativos no País, sendo que a grande maioria está nas capitais estaduais. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), órgão vinculado ao Ministério da Saúde (MS) é o responsável pela organização e pela sistematização do trabalho dos registros, qualificando as equipes e oferecendo apoio técnico.
É através das informações geradas pelos registros que o Inca analisa e propõe ao Ministério da Saúde as políticas públicas para o câncer, com o planejamento das intervenções a serem implementadas no País.
Além disso, utilizando os dados dos registros e aplicando estatísticas apropriadas, é possível estimar a incidência dos principais tipos de câncer para todos os estados e capitais do Brasil. Essas estimativas são amplamente divulgadas para servirem de referência para planejamento e gestão, estudos e pesquisas.
O RCBP de Campinas iniciou seus trabalhos em 1992 através de um convênio entre a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e a Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e funcionou assim até 2014. Após um pequeno período de inatividade, em 2014, a SMS, através do Departamento de Vigilância em Saúde, assumiu a gestão do RCBP e reiniciou suas atividades em 2015.
As coletas de casos de neoplasias de moradores de Campinas são realizadas em diversas instituições de saúde públicas e privadas, como laboratórios de patologia, clínicas de quimioterapia e radioterapia, clínicas de oncologia clínica, hospitais, entre outros, o que garante uma ampla cobertura dos casos e possibilita dados confiáveis e informações fidedignas. Em Campinas, câncer é do grupo de doenças de comunicação compulsória.
A Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (Iarc), órgão vinculado à Organização Mundial de Saúde (OMS), tem entre suas atribuições a avaliação da qualidade dos dados de todos os registros do mundo. A Iarc é responsável por produzir dados epidemiológicos de incidência mundial do câncer utilizando dados dos registros classificados como de alta qualidade após passarem por uma cuidadosa avaliação, que inclui critérios de comparabilidade, integridade e precisão dos dados.
Os dados do RCBP Campinas, para nossa alegria e nosso orgulho, foram incluídos no Volume VII da Incidência de Câncer em Cinco Continentes (CI5), lançado em outubro deste ano de 2023, e que compila dados de incidência de câncer de 455 registros, cobrindo 588 populações em 70 países. Outro ponto importante sobre os registros de câncer é a participação em pesquisas.
No momento, o RCBP de Campinas está vinculado a duas grandes pesquisas mundiais. A primeira é a Cancer Risk in Childhood Cancer Survivors (CRICCS), com foco nas neoplasias infantis. A segunda é uma pesquisa CONCORD que já está em sua quarta edição, e é um programa de vigilância mundial das tendências na sobrevivência ao câncer, liderado pela London School of Hygiene & Tropical Medicine.
O programa é apoiado por 40 agências nacionais e internacionais, incluindo a OMS EURO, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial. Estudos mundiais como esses são de suma importância para verificar as inequidades existentes entre os países desenvolvidos e os demais e propor estratégias capazes de diminuir essas desigualdades.
O uso de informações fidedignas nas ações de planejamento do cuidado tem se mostrado cada vez mais imprescindíveis. Desde a criação de campanhas educativas e de prevenção até a alocação de recursos humanos e a implementação de novas tecnologias, as ações tendem a ser mais assertivas se tivermos um panorama que nos mostre claramente a magnitude do problema a ser enfrentado.
O Brasil deveria estimular todos os entes federados a criarem e manterem seus registros de base populacional.
Hoje, esses registros são poucos, e nem todos com qualidade de informações que permitam ser incluídos em bases internacionais. Dentro desta nova política de enfrentamento do câncer, agora lei no País, os registros terão, certamente, um papel fundamental.
>>> Carmino Antônio de Souza é professor titular da Unicamp. Foi secretário de saúde do estado de São Paulo na década de 1990 (1993-1994), da cidade de Campinas entre 2013 e 2020 e Secretário-executivo da secretaria extraordinária de ciência, pesquisa e desenvolvimento em saúde do governo do estado de São Paulo em 2022. Diretor Científico da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH). Atual presidente do Conselho de Curadores da Fundação Butantan e pesquisador responsável pelo CEPID CancerThera.
>>> Juliana Natívio é coordenadora da Vigilância dos Agravos e Doenças Crônicas Não Transmissíveis e Informações Epidemiológicas e responsável pelo Registro de Câncer de Base Populacional de Campinas – Departamento de Vigilância em Saúde (Devisa) da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas.